{"id":128,"date":"2013-08-11T14:41:40","date_gmt":"2013-08-11T14:41:40","guid":{"rendered":"?page_id=128"},"modified":"2024-02-23T10:27:03","modified_gmt":"2024-02-23T10:27:03","slug":"uma-curadoria-da-falta-ana-bigotte-vieira","status":"publish","type":"page","link":"https:\/\/acarte.pt\/uma-curadoria-da-falta-ana-bigotte-vieira\/","title":{"rendered":"ACARTE: HETEROTOPIA, HETEROCRONIA e CONSTRU\u00c7\u00c3O DO COMUM"},"content":{"rendered":"
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Uma curadoria da Falta: o Servi\u00e7o ACARTE – O Servi\u00e7o ACARTE da Funda\u00e7\u00e3o Calouste Gulbenkian. 1984-1989, Lisboa, DOCUMENTA\/Sistema Solar \u00a02021. Design da Capa: Ana Teresa Ascens\u00e3o (descarregar PDF)<\/a>.<\/span><\/p>\n

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recens\u00e3o de Jesus Carrillo<\/p>\n

Para algu\u00e9m que interrogou a natureza das institui\u00e7\u00f5es art\u00edsticas em Espanha, a primeira coisa que chama a aten\u00e7\u00e3o no texto\u00a0de Ana Bigotte Vieira \u00e9 o \u00e2ngulo e o quadro interpretativo a partir do qual se coloca semelhante quest\u00e3o em rela\u00e7\u00e3o a\u00a0Portugal.<\/p>\n

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Talvez devido \u00e0 centralidade e ao peso do aparelho institucional da arte em Espanha, gerou-se um maelstrom <\/em>discursivo que magnetiza toda a aten\u00e7\u00e3o, impedindo que se reflictam nele quest\u00f5es de amplitude e relev\u00e2ncia que o estudo de Ana Bigotte desenrola sobre a cultura e a sociedade portuguesa. Esta \u00e9 a maior virtude da autora: a de propor, a partir de an\u00e1lise detalhada de uma experi\u00eancia institucional como foi o ACARTE no seu per\u00edodo inicial, entre 1984 e 1989, o significado das transforma\u00e7\u00f5es sociais, culturais e pol\u00edticas que se produziram em Portugal durante o \u00faltimo quartel do s\u00e9culo XX e a sua transcend\u00eancia para a compreens\u00e3o do\u00a0presente.<\/p>\n

No caso espanhol, este tipo de estudos t\u00eam ocorrido sistematicamente a partir de uma hist\u00f3ria de arte que se interroga, com insist\u00eancia narcisista, sobre o porqu\u00ea da arte espanhola e das suas institui\u00e7\u00f5es n\u00e3o cumprirem as expectativas de qualidade e de relev\u00e2ncia mundial que alguns almejavam ou a miss\u00e3o de defender a promessa de autonomia e de emancipa\u00e7\u00e3o por outros reivindicada. As quest\u00f5es levantadas por Ana Bigotte, pelo contr\u00e1rio, n\u00e3o s\u00e3o formuladas no quadro disciplinar estrito da hist\u00f3ria da arte, mas sim a partir do enquadramento poroso e aberto da teoria e dos estudos culturais, tomando como refer\u00eancias fundamentais a obra de autores como Lu\u00eds Trindade ou Boaventura de Sousa Santos, cujo objeto ultrapassa a esfera especifica do art\u00edstico para abordar a cultura como um processo social com m\u00faltiplas ramifica\u00e7\u00f5es. F\u00e1-lo seguindo o caminho aberto por Andr\u00e9 Lepecki, que formulou interessantes hip\u00f3teses sobre a constru\u00e7\u00e3o do \u201ccorpo\u201d social portugu\u00eas desde o estudo da dan\u00e7a e da performance. Esta \u00e9 outra especificidade diferencial do caso luso que contrasta com o do pa\u00eds vizinho: o enfoque sobre as artes do corpo e as assim chamadas \u201cartes vivas\u201d, como o teatro, a dan\u00e7a e a m\u00fasica. Em Espanha este espa\u00e7o foi ocupado tradicionalmente pelas artes objetuais, a pintura e a escultura, sendo a exposi\u00e7\u00e3o o dispositivo cultural por excel\u00eancia, e o museu o seu quadro institucional. Este contraste implica uma ordena\u00e7\u00e3o e uma hierarquia diferentes, tanto dos agentes como dos valores em\u00a0causa.<\/p>\n

Lendo a narra\u00e7\u00e3o de Ana Bigotte Vieira reconhecemos no manifesto redigido por Almada Negreiros e seus contempor\u00e2neos a prop\u00f3sito da visita dos Ballet Russos a Lisboa em 1917, um papel fundacional similar a que, ressalvando as dist\u00e2ncias, se concede a Picasso e ao Guernica na defini\u00e7\u00e3o das rela\u00e7\u00f5es entre vanguarda e horizonte de modernidade em Espanha. N\u00e3o \u00e9 por acaso, no entanto, que a refer\u00eancia a Almada Negreiros tenha sido expl\u00edcita no arranque do ACARTE, o departamento fundado por Madalena Perdig\u00e3o inserido na estrutura institucional da Funda\u00e7\u00e3o Calouste Gulbenkian, em\u00a01984.<\/p>\n

O que Ana Bigotte aborda, no que foi a sua pesquisa de doutoramento n\u00e3o \u00e9, portanto, somente a narra\u00e7\u00e3o da experi\u00eancia institucional do ACARTE e a produ\u00e7\u00e3o de um arquivo dos programas e atividades que acolheu e lan\u00e7ou durante os seus cinco primeiros anos de funcionamento (dire\u00e7\u00e3o de Madalena Perdig\u00e3o). A partir do ACARTE, Bigotte desenvolve um sofisticado exerc\u00edcio de interpreta\u00e7\u00e3o das transforma\u00e7\u00f5es sociais ocorridas em Portugal na d\u00e9cada de 80, usando um n\u00e3o menos sofisticado aparelho critico que lhe permite abordar as temporalidades, espacialidades e as m\u00faltiplas corporalidades que se colocam em jogo num per\u00edodo de intensas transforma\u00e7\u00f5es. ACARTE aparece como uma heterotopia e heterocronia. Aparece como um ALEPH no qual se suspendem as determina\u00e7\u00f5es de uma sociedade rec\u00e9m-sa\u00edda do longo per\u00edodo da ditadura de Salazar, no qual se viram truncadas, espacial, temporal e corporalmente, as aspira\u00e7\u00f5es da modernidade proclamadas por\u00a0Almada.<\/p>\n

Isso n\u00e3o converte o ACARTE numa miragem ou numa mera bolha cultural. Ana Bigotte, pela m\u00e3o de Trindade e Lepecki, percorre o desenvolvimento de um \u201cpovo pop<\/em>\u201d, com todas as suas contradi\u00e7\u00f5es, resultado de uns \u201clongos anos sessenta\u201d a contrapelo das diretrizes ideol\u00f3gicas do regime. A autora conta como, \u00e0 medida que a d\u00e9cada de 80 avan\u00e7a, sob o signo do \u201ccavaquismo\u201d e em paralelo ao que se acontece com o seu vizinho peninsular, se produz uma desideologiza\u00e7\u00e3o generalizada da sociedade e uma reviravolta identit\u00e1ria impulsionada pelo imagin\u00e1rio europe\u00edsta ap\u00f3s a entrada na Uni\u00e3o Europeia. Tamb\u00e9m nos d\u00e1 conta da tradi\u00e7\u00e3o de Educa\u00e7\u00e3o pela Arte com que o ACARTE se relaciona diretamente atrav\u00e9s da figura de Madalena Perdig\u00e3o, que abandonou a sua colabora\u00e7\u00e3o com o Minist\u00e9rio da Educa\u00e7\u00e3o para regressar \u00e0 Funda\u00e7\u00e3o Gulbenkian, no momento em que finalmente se inaugurava o Centro de Arte e fundava o ACARTE como parte integral do mesmo. Ao faz\u00ea-lo, a Funda\u00e7\u00e3o rompeu com o modelo hegem\u00f3nico de museu de arte moderna consagrado no MoMa de Nova Iorque e apostava numa f\u00f3rmula institucional relacional e processual que foi ganhando for\u00e7a no sistema internacional da arte nas d\u00e9cadas\u00a0seguintes.<\/p>\n

No entanto, o espa\u00e7o cultural que ocupa o ACARTE n\u00e3o \u00e9 um mero reflexo do seu contexto pol\u00edtico e social. Aparece, antes, como um laborat\u00f3rio em que se experimentam, de forma aberta, as possibilidades e potencialidades de uma sociedade carente de coordenadas ou de uma corporeidade plaus\u00edveis. Isto permite-lhe abordar \u201cos Anos 1980\u201d n\u00e3o somente a partir da \u201ca realidade\u201d do que foram, como a partir dos desejos e as expectativas que se concebiam num \u00e2mbito excecional como ACARTE no qual se misturavam temporalidades passadas, presentes e futuras; um lugar que era simultaneamente muitos e ningu\u00e9m espec\u00edfico; um \u201cmodo de ser\u201d mais do que um lugar propriamente\u00a0dito.<\/p>\n

Ana Bigotte aproxima-se da atividade do ACARTE simultaneamente com extremo rigor anal\u00edtico e com fasc\u00ednio por um processo que, a partir da conjuntura hist\u00f3rica em que se d\u00e1, cont\u00e9m uma promessa de constru\u00e7\u00e3o de comunidade e de transforma\u00e7\u00e3o coletiva de uma grande pot\u00eancia. Neste sentido, Ana Bigotte adota a argumenta\u00e7\u00e3o do pensador Roberto Esposito ao utilizar o conceito de \u201ccuradoria da falta\u201d, ou car\u00eancia, como chave para interpretar a l\u00f3gica motriz do ACARTE e como ingrediente diferencial em que se funda a sua invoca\u00e7\u00e3o de uma comunidade \u00e0 sua volta. Face \u00e0 auto-satisfa\u00e7\u00e3o, a busca pelo sucesso ou pelo reconhecimento externo que muitas vezes reconhecemos nas pol\u00edticas culturais, ACARTE projeta-se a partir da falta. No texto program\u00e1tico de Madalena Perdig\u00e3o, \u201cO que n\u00e3o vamos ser nem fazer\u201d, afirma-se explicitamente a vontade de gerar comum a partir do que ainda n\u00e3o se sabe, do que deve ainda ser adquirido coletivamente a partir da experi\u00eancia, dentro de uma \u00e9tica que conecta com a pr\u00e1tica pedag\u00f3gica: \u201cVamos permitir que outros corram riscos e comeram\u00a0erros\u201d.<\/p>\n

Para entender esse v\u00ednculo paradoxal entre a busca de um comum e uma institui\u00e7\u00e3o de origem privada, Ana Bigotte faz-nos recuar ao momento culminante do processo revolucion\u00e1rio em que se discutia o sentido do Portugal do futuro. Uma d\u00e9cada antes da funda\u00e7\u00e3o do ACARTE, no mesmo ano em que Madalena Perdig\u00e3o havia renunciado ao seu posto original na Funda\u00e7\u00e3o ap\u00f3s ter sido acusada de elitismo e de imperialismo cultural, o suplemento do Expresso <\/em>publica o dossi\u00ea: \u201cQue Gulbenkian temos, que Gulbenkian queremos?\u201d de que real\u00e7a o uso enf\u00e1tico da primeira pessoa do plural: \u201ctemos, queremos\u201d. Apesar da pol\u00e9mica e das acusa\u00e7\u00f5es de coniv\u00eancia entre a dire\u00e7\u00e3o da Funda\u00e7\u00e3o e o regime, esta era reconhecida como um irrenunci\u00e1vel \u201ccen\u00e1rio de modernidade\u201d. Dez anos mais tarde, a cena havia mudado notoriamente num Portugal que ingressava na Uni\u00e3o Europeia, mas persistia no desejo e no imagin\u00e1rio social essa identifica\u00e7\u00e3o da Gulbenkian com o futuro e uma modernidade sempre em\u00a0falta.<\/p>\n

No entanto, h\u00e1 algumas perguntas que, pelo menos de uma perspetiva espanhola, permanecem sem resposta. Aborda-se a anomalia de que a Funda\u00e7\u00e3o de origem privada e estrangeira ocupe o papel de \u201cMinist\u00e9rio da Cultura\u201d e seja, como se afirma no texto, uma institui\u00e7\u00e3o fundamental na transforma\u00e7\u00e3o cultural de um pa\u00eds como Portugal. No entanto, as raz\u00f5es da aus\u00eancia de pol\u00edticas culturais de natureza estatal equivalentes \u00e0s aplicadas no resto da Europa e em Espanha n\u00e3o s\u00e3o abordadas com a profundidade equivalente \u00e0s utilizadas em outras quest\u00f5es, apesar de Ana Bigotte Vieira n\u00e3o as ignorar. De certa forma, assume-se como algo dado \u00e0 exce\u00e7\u00e3o portuguesa relativamente \u00e0s din\u00e2micas de modernidade vigentes no contexto europeu, uma exce\u00e7\u00e3o apenas interrompida pela presen\u00e7a da Gulbenkian. Por outro lado, ficamos a conhecer parcamente a personagem central da narra\u00e7\u00e3o: Madalena Perdig\u00e3o. Ainda que o texto nos informe detalhadamente sobre os dados fulcrais da sua carreira profissional, Ana Bigotte n\u00e3o interroga a sua figura desde marcos de interpreta\u00e7\u00e3o de g\u00e9nero, de classe social e de ideologia que permitam explicar os porqu\u00eas e os comos das suas decis\u00f5es e da sua capacidade de a\u00e7\u00e3o. D\u00e1 a impress\u00e3o de que a poderosa presen\u00e7a da Funda\u00e7\u00e3o, ao mesmo tempo objeto de estudo e possibilitadora do mesmo, gera \u00e2ngulos mortos ou linhas de sombra que limitam consciente ou inconscientemente a\u00a0an\u00e1lise.<\/p>\n<\/div>\n

Madrid, Mar\u00e7o de 2023<\/p>\n