Sobre
Como parte integrante do Projecto Almada foram levados à cena três espectáculos, dois dos quais a partir de textos originais do autor, Deseja-se Mulher e Antes de Começar.
Procurando, em 1984, quem convidar para encenar estes textos, Madalena Perdigão acabou por convidar Fernanda Lapa para encenar Deseja-se Mulher e Lourdes Castro/Manuel Zimbro para levar à cena Antes de Começar.
Nos dois casos há uma relação com o projecto de teatro moderno de Fernando Amado na Casa da Comédia. Como se pode ler nos programas dos espectáculos e na imprensa, tanto Fernanda Lapa como Lourdes Castro participaram em encenações que Fernando Amado fez destes textos: a peça Deseja-se Mulher “foi escrita em 1928 mas só em 1963 foi levada ao palco numa encenação de Fernando Amado. Fernanda Lapa fez nela a sua estreia como actriz, interpretando a figura da “Vampa”. Foi também com esta peça que se estreou como encenadora, levando-a, em 1972, à Casa da Comédia” (Comércio do Porto, 16-6-1984)
É também a Fernando Amado que se deve, em 1956, no Teatro Nacional D. Maria II, a direcção de Lourdes Castro no papel da personagem principal de Antes de Começar, espectáculo que na encenação de 1984 terá a direcção de Manuel Zimbro, com Lourdes Castro no mesmo papel. Tratar-se-ia, assim de uma reprise, como nos diz o Comércio do Porto. (Comércio do Porto, 16-6-1984)
Assim, ainda que de um modo não explicitamente intencional nem em jeito de homenagem, pode dizer-se haver um fio estendido entre o início da acção do ACARTE no que ao teatro diz respeito e os propósitos modernos da acção de Fernando Amado na Casa da Comédia.
De acordo com O Diário Fernanda Lapa terá pretendido “fazer um espectáculo vivo, divertido, pensado para os jovens, muito de acordo com as propostas estéticas do modernismo.” (O Diário, 19-7-1984). Como se vê nas fotografias de arquivo e Fernanda Lapa explica no programa do espectáculo, Deseja-se Mulher consistiu num Café Teatro na Sala Polivalente do Acarte:
[…] Estamos em 1984, o Café-Teatro está na moda. Hesitei repeti-lo. Decidi-me por fazê-lo. Na origem, as mil conversas com Almada Negreiros sobre este mesmo texto. A prática dos Dadaístas. As teorias dos Futuristas. E o jogo divertido de fazer ao contrário. Quero dizer: fazer Café-Teatro no Teatro e não Teatro no Café-Teatro. Revisito agora estes lugares …de sítio nenhum… e atrevo-me a colocar por entre o espectáculo… um actor carregado de palavras de Almada (as que o autor … me disse durante todos estes anos quando o objecto era Deseja-se Mulher… ). Acredito que pode à primeira vista aparecer como um grave abuso. Para mim, cúmplice de Almada neste combate em que o público deve ganhar, a sua presença tomou-se necessidade imperiosa.
Fernanda Lapa
Carlos Zíngaro, autor da música explica porém que não se tratou de um Music Hall:
O Music-Hall está lá, com outras roupagens, porque tanta coisa já passou (e passa) .. E aos ventos uivantes das vozes que (também) passam direi, citando: “O espontâneo, o hesitante, o sentimental, o abstracto, o concreto, o sintético, o amor, o ódio, a tenacidade. a intenção, o gesto, a rítmica. o inverosímil. .. e pedradas mais si-ré-sol e só um bico de acetilene a minha vida catapum.. tenho fome trrrrr-pum-tchim-tchim-tchim-tchim-tra-Ia-sol-ré-mi- Iá-Iá·lá-Iá raios os partam …
E silêncio.
Lisboa, 13 (6ª – feira) de Julho
Obrigado e até sempre,
Carlos Zíngaro
Maria Helena Serôdio, reforçando o carácter singular da proposta escreveu: “para encenar o texto de Almada, Deseja-se Mulher, ou 1+1=1, Fernanda Lapa procurou acentuar a enunciação crítica de outros textos de Almada […] acentuou-lhe o carácter modernista inserindo-lhe […] declarações de princípio, definições teóricas de teatro, ou, mais simplesmente, irónicos comentários à tradicional arte institucionalizada do teatro. […] O espaço cénico que José Costa Reis define na sala polivalente confere às figuras a liberdade “condicionada”; por entre o distinto café-teatro que se inventa […] estende-se a passarelle com mesa reservada […]. É assim proposta simultaneamente a cumplicidade do espectador (também ele sentado no lugar da mesa) e o voyeurismo que uma passagem de modelos implica.
O espectáculo […] sendo modo de dialogar com Almada é igualmente modo de figurar a diferença em relação ao outro teatro que por aí se vai fazendo […]: porque excessivo no brilho, rico nos meios de que dispõe, friamente ousado. Porém, Almada.” (Maria Helena Serôdio, O Diário, 5-8-1984).
Por ocasião desta encenação é também republicada, no programa do espectáculo, a crítica de Jorge Silva Melo à encenação de 1972 de Deseja-se Mulher:
Agora que sabemos que “O teatro é uma festa” .. há quem comece a querer que o teatro seja “um party” ….Deseja-se Mulher, é, acima de tudo, isso: uma festa chic, um party elegante, revivalista comme il faut, snob como se pode – uma festinha entre amigos. ( … )
Jorge Silva Melo, Crítica, 1972
Ficha Técnica
Encenação
FERNANDA LAPA
Música
CARLOS ZÍNGARO
Cenários e Figurinos
JOSÉ COSTA REIS
Coreografia
ELISA WORM E LUIS CAROLINO
Luzes
ORLANDO WORM
Adereços
CARLOS CRISTO
É assinalável que a primeira produção teatral (sua/própria) que a Fundação Calouste Gulbenkian realiza, se faça:
1.° – No Centro de Arte Moderna;
2.° – Com uma obra de Almada Negreiros, concomitantemente enigmática e cristalina. Carente, pois, de propostas de decifração e de olhos (grandes como os do Autor) para apreender os enigmas e avaliar as soluções, ligando-se, estas, a outras artes que professou e que, por felicidade deste caso, se podem ver em abundância, expostas ali à mão;
3.° – Com um tipo de teatro que não logrou assento entre aquele que em Portugal habitualmente se cultiva – o que dá nota das ousadias que se impõem a um centro de arte moderna a actuar neste país e, expressamente, na redescoberta das artes para o nosso tempo e no campo (virgem?) da interdisciplinaridade entre elas;
4.° – Com o empenho do Centro em toda esta homenagem a Almada e, nomeadamente, com o do Serviço de Animação Criação Artistica e Educação pela Arte;
5.° – Mobilizando uma equipa de actores e outros participantes e colaboradores do espectáculo que desde logo compreendeu as responsabilidades em que se investia e tanto deu para atingir os objectivos que vibrantemente a desafiam.
Somente um facto justifica que apareça esta minha nota no programa de DESEJA-SE MULHER e que me tenha sido pedida; fui inicialmente o conselheiro do Serviço de Animação. Criação Artística e Educação Pela Arte para o lançamento desta “operação”, no que tive muito prazer e muita honra.
Lisboa. 13 de Julho de 1984
Carlos Wallenstein