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A propósito da Segunda Edição do Jazz em Agosto que contou já com a colaboração de Rui Neves na organização de uma edição tão “eclética” e “actualizada” quanto, como veremos, polémica, escreve Madalena Perdigão, recapitulando as ligações entre a música Jazz e a Fundação:

 

“A primeira experiência de introdução do Jazz em programa da Fundação Calouste Gulbenkian ocorreu em 1970, por ocasião do 14 (o último, até à presente data) Festival Gulbenkian de Música, em que interveio o Modern Jazz Quartet. A segunda experiência verificou-se em 1984, com o ciclo “Jazz em Agosto”, que levou
milhares de pessoas ao Anfiteatro de Ar Livre para escutarem alguns jovens músicos portugueses de Jazz.

Esta experiência teve o apoio do Hot Clube de Portugal – que tantos serviços tem prestado à causa do Jazz em Portugal revelou-se plena de virtualidade. Havia pois que prosseguir o caminho assim encetado, alargando-o, se possível, também a artistas estrangeiros, o que de facto veio a acontecer neste Jazz em Agosto de 85.

Tivemos agora a possibilidade de contar com a colaboração competente e entusiástica de Rui Neves, atenta a todos os pormenores da organização. Com uma programação ecléctica, numa perspectiva actualizada, o Jazz em Agosto 85 representa um passo em frente, promissor de novas e futuras realizações. De um ponto de vista cultural, justifica-se a inserção do Jazz nos programas da Fundação Gulbenkian. Ao valor intrínseco da música de Jazz, acrescenta-se o facto de não ser uma linguagem fácil, e de fazer apelo à imaginação criadora e ao experimentalismo. A não predominância da escrita, que se verifica na música de Jazz e o constituir uma forma aberta, constituem outros tantos factores do seu interesse. Do ponto de vista da fruição do Jazz, cabe a palavra ao jovem público amador que, pela sua presença, irá dizer se, sim ou não, esta iniciativa vem ao encontro dos seus legítimos anseios.

M.M.A.P.

 

 

Na imprensa pode ler-se “Jazz a Preço Acessível”, título da notícia do Correio da Manhã. (Correio da Manhã, 31-7-1985) estando previstos descontos para jovens e estudantes:

 

Desta feita entendeu-se a ampliação da importância e das participações musicais, convidando-se alguns nomes importantes na actual cena jazzística mundial, sem excluir a portuguesa, o maior deles, sem dúvida, o da orquestra de Sun Ra. O preço de cada bilhete é de 500$00, com descontos de 50 % para jovens, estudantes, sócios da Juventude Musical Portuguesa e músicos possuidores de cartão profissional.” (Diário de Lisboa, 1-8-1985)

 

 

Rui Neves, responsável pela selecção dos convidados, explica:

 

“O papel da Gulbenkian é estimular os músicos nacionais em projectos diferentes daqueles que normalmente têm. Ao encomendarmos o espectáculo de António Pinho [Vargas] propusemos-lhe que trouxesse uma coisa diferente. ‘Estamos fartos do teu quarteto!’

A presença do grupo Ónix deveu-se fundamentalmente ao facto de ter como contrabaixista um português emigrado em Barcelona: “Quisemos mostrar o que os nossos músicos fazem lá fora. Ainda pensámos no Carlos Zíngaro e no Saheb Sarbib, mas acabou por se proporcionar a vinda do José Eduardo.” […] Rui Neves é favorável a que, para o ano, a programação seja feita por um grupo de “pessoas capazes”, no sentido de a tornar mais diversificada e representativa. É que um apoio financeiro como o da Gulbenkian torna possível uma política de continuidade na apresentação do jazz em Portugal e há que lhe aproveitar as vantagens. […] “Estas coisas não podem ser feitas na iminência dos défices. Não se pode trabalhar para perder dinheiro. Em seis anos de actividade de promoção é a primeira vez que eu vejo realizar-se uma coisa bem feita. Isto só é possível pelo apoio da Fundação.” […] (Nuno Vidal, Jornal de Notícias, 27-8-1985)

 

Esta edição, será, no entanto, marcada por uma imensa polémica em torno da participação da Sun Ra Archestra e do suposto ‘ecletismo’ da programação à qual faltaria o “jazz”, não faltando mesmo quem comente qual a música “mais próxima dos gostos da Fundação”:

 

“Os quatro concertos já realizados no Anfiteatro ao Ar Livre confirmam pelo menos uma das promessas para o Festival deste ano: proporcionar música eclética. Se é verdade que algumas críticas apontam a ausência maioritária do jazz nos concertos, o dito ecletismo na programação não pode ser contestado.” (Nuno Vidal, Jornal de Notícias, 27-8-1985)

“A Arkestra de Sun Ra oferece, em 1985, um espectáculo lamentável e patético. Alguns dos músicos, que o acompanham há longo tempo, estão já numa idade (Sun Ra é provavelmente septuagenário) em que não pode exigir-se o vigor e convicção necessárias às cabriolas, rodinhas e momices que penosamente vão arrastando pelo palco. […] No programa anunciado para este Jazz em Agosto constato a presença de vários tipos de proposta musical que pouco terão a ver com o jazz. Mas, ao contrário do logro de Sun Ra, prevejo-lhes o mínimo de dignidade e capacidades para atingirem os seus objectivos, por mais discutíveis que eles sejam. […]” (Diário de Notícias, 4-8-1985)
“Reinava uma certa desorientação generalizada, entre o público e os críticos, no intervalo do primeiro espectáculo que a orquestra de Sun Ra deu no anfiteatro da Gulbenkian. A lotação esgotara-se por razões que vale a pena enumerar: as organizações da Fundação têm fama de qualidade, a promoção de “Jazz em Agosto 85” ligou a música da orquestra ao conceito de vanguarda, ao espírito de Vilar de Mouros, ao exotismo. Afinal, a lebre não era lebre, era gato, animal muito mais comum, afável, simpático e conhecido. […] Descontando uma ou outra tendência que ao longo das décadas mais marcou a prática da banda, a música de Sun Ra sempre foi simples, clássica e ilustrada com danças, desfiles, vozes e guarda-roupa espalhafatoso. E foi isso, afinal, o que aconteceu na Gulbenkian nos dois espectáculos apesar dos textos do programa, apesar da crítica francesa pós-Maio 68, apesar da terminologia erudita que a tenta ler e classificar em outras áreas, atribuindo-lhe causas e efeitos insuspeitados. O Sol vai nu! […] Na quarta-feira, Pinho Vargas estreia peças que, por isso estarão mais próximas dos gostos da Fundação, e, assim, não se vai realizar aquele anseio daquele dirigente desportivo que costumava afirmar: “Tudo bem, desde que a modalidade saia prestigiada!”.(Diário de Lisboa, 5-8-1985)

 

Mas a polémica em torno de Sun Ra, assumirá, como veremos, contornos maiores. Vale a pena ler a esse respeito não só a crítica de António Curvelo e Raul Vaz Bernardo publicada no Expresso como a resposta que lhe escreve Rui Neves. Este, posteriormente, em entrevista dada ao Blitz explica melhor o que se passou, chamando a atenção para a enorme afluência de público que caracterizou a iniciativa, obrigando mesmo Sun Ra a fazer um concerto extra. Vejamos a crítica de António Curvelo e Raul Vaz Bernardo:

 

“Realizados três – mais um, 4ª feira – dos cinco concertos que preenchem o “Jazz em Agosto 85” a prática confirmou aquilo que o papel já prometera – um programa de equívocos. O que por si só nada tem a ver com a qualidade. Como aliás, se ouviu (atrás) e se verá (adiante).

Por alheamento, desprezo ou ignorância sempre a Fundação Calouste Gulbenkian tratou mal o jazz. A própria o confirma, pela pena de M.M.A.P.: só ao fim de 13 festivais de Música, o jazz mereceu chamada ao palco, na altura, no já longínquo ano de 1970, optimamente entregue ao M.J.Q.

Um grupo que, diga-se de passagem, para além de produzir um excelente jazz, reunia as condições qb para não chocar os ouvidos puristas da vetusta Fundação. O deserto que se seguiu estendeu-se até 84, quando Agosto foi semanalmente ocupado por alguns dos grupos portugueses que ultimamente se dedicaram ao jazz. Um ano depois a Fundação repete a experiência. Sinal de que se trata de uma opção e não de um acidente? Se sim, aplausos; se não, viva a cultura! A ouvir vamos. […]
O programa elaborado pelo pomposo Serviço de Animação, Criação Artística e Educação pela Arte para o “Jazz em Agosto 85” era, à partida, surpreendente. A acreditar na editorialista da Fundação procurou-se prosseguir uma experiência que se revelara “plena de virtualidade”, razão que levou a recorrer “à colaboração competente e entusiástica de Rui Neves”. […] E aqui começaram os equívocos, agravados pela campanha de promoção na rádio, que pretendeu fazer de”Jazz em Agosto” uma espécie de mostra do melhor jazz que já se faz no mundo, da vanguarda da qualidade, de um jazz verdadeiramente diferente. […] Concluindo, dir-se-á que a Fundação nos ofereceu até hoje três espectáculos, cada um com sua verdade – o que é uma maneira elegante de fazer passar algumas mentiras: um concerto com muitos bons momentos de jazz (Sun Ra), outro com muitos momentos sem jazz (APV Ensemble) e um terceiro com alguns momentos de jazz (Quarteto Ónix).” (Expresso, 24-8-1985)

 

E a resposta de Rui Neves:

 

“Face ao texto crítico surgido na Revista do Expresso de 24 de Agosto 1985, da co-autoria de António Curvelo e Raul Vaz Bernardo – “Jazz em Agosto 85: Um Programa de Equívocos” […], creio que o texto crítico citado é um mau serviço, porque surpreendentemente mal-intencionado e claramente exibidor de focos de reaccionarismo estético […]. O texto crítico organiza-se prioritariamente contra uma ideia de vanguarda, contra uma programação assumida deliberadamente eclética e actual, significando apostar na ambiguidade dos conceitos e das fronteiras, numa intenção que se pretendeu saudável, totalmente oposta à inferência manifestada no texto crítico de”maneira elegante de fazer passar algumas mentiras”. […] É difícil demonstrar mais más-intenções do que as que o autor ou autores do texto crítico exprimem, que chegam ao cúmulo de afirmar, com impunidade aparente, e em sequência, “[…] surpreendeu o público (levando algum a sair)”, quando a realidade foi bem diferente com um excesso de público a querer entrar no recinto do Anfiteatro ao Ar Livre da Fundação Calouste Gulbenkian, obrigando a Sun Ra Arkestra a um concerto extra no dia 3 de Agosto.” (Rui Neves, Expresso, 7-9-1985)

 

Ou a entrevista que pela mesma altura deu ao Blitz:

 

“Infelizmente em Portugal o jazz é o filho enjeitado da música em geral, quer a nível de divulgação […], quer a nível de edição de discos. Mesmo a nível de espectáculos ao vivo, o único acontecimento digno de relevo tem sido o “Cascais-Jazz” […]; por isso qualquer acontecimento fora do âmbito do “Hot Clube de Portugal” […] é acolhido com contentamento e entusiasmo por parte dos melómanos. Foi o caso por exemplo da série de cinco espectáculos designada por “Jazz em Agosto” que em boa hora a Fundação Calouste Gulbenkian, com a preciosa colaboração de Rui Neves, decidiu pôr de pé a preços extremamente convidativos e com uma programação a todos os títulos notável, pesem embora os gostos diversificados dos vários milhares de melómanos que por isso mesmo sugerem sempre discussões e ideias sobre quem deveria vir em lugar dos que vieram… Pode dizer-se até pela enorme afluência de público que sempre registou (houve várias lotações esgotadas, tendo mesmo Sun Ra repetido no sábado seguinte a actuação de quarta-feira anterior) que o empreendimento foi coroado de êxito.

 

Entrevista com Rui Neves
Rui Neves: […] Fui convidado expressamente para elaborar a programação deste último “Jazz em Agosto” que naturalmente haveria de reflectir os gostos, as perspectivas de quem a fez. […] A inclusão de músicos periféricos ou mesmo desligados do jazz tem uma razão de ser. O próprio público de jazz quer ter outras aventuras, outras alternativas e seria criminoso não o contemplar […] repare-se que a crítica que “criticou” certas etapas do festival referido, fê-lo de modo extremamente purista. Duvidaram da pureza de todo o evento, principalmente por estarem arreigados a fórmulas antigas. […] ao nível dos divulgadores, eu serei neste momento o mais insistente agente dum certo não-fronteirismo, até porque comecei a ouvir música quando os Beatles e os Stones estoiravam mundo fora. […] Onde a “porca torce o rabo” é nos desenvolvimentos contemporâneos do jazz. Aí as nossas desavenças teóricas são muito manifestas. E pior, enquanto críticos, tentam passar atestados de mediocridade ao público, perante as suas concepções fortemente imobilizadas. Não vejo que haja direito numa atitude dessas. Sinto que da parte do crítico de jazz nunca houve um esforço para se aproximar, aglutinar público mais jovem, que naturalmente se mostra com outro tipo de gosto, nomeadamente linguagens modernas do rock. Acho que sempre houve a atitude má, má mesmo, de se valorizar o jazz em detrimento do rock. Não há que classificar uma de melhor que outra, antes analisá-las, senti-las dentro da força, da autenticidade que manifestem…

 

Blitz: Das análises críticas de 84 às de 85, a crítica revelou algumas dificuldades em “aceitar” a Fundação Gulbenkian como um novo motor da divulgação, não já do jazz, mas da música contemporânea. Comentas?

Permito-me exprimir as minhas grandes esperanças em que a Gulbenkian venha cada vez mais a dar um incremento inestimável à divulgação do jazz, no nosso país, ultrapassados os derrotismos puristas de quem nada quer ver acontecer! E mais. Espero que nada do que antevejo aconteça só no plano consumista de organizar espectáculos, vender bilhetes…as pessoas ouvirem e irem-se embora, mas mais no campo da formação de novos músicos. […]” (Blitz, 10-9-1985)