Preencher lacunas”… “Fazer falta”: por várias vezes Madalena Perdigão atentará na questão da falta como uma das razões de ser do Serviço ACARTE, razão esta que se prende também com o como da sua acção. Esta abertura à falta implicaria, como se verá, o questionamento radical de uma noção identitária com a subsequente des-hierarquização que daí advém, mostrando-se muito interessante para pensar o ACARTE.
Roberto Esposito (2010) em Communitas – The Origin and Destiny of The Community, propõe uma teorização do conceito de falta onde esta aparece não como algo negativo, uma culpa, uma deficiência, uma pobreza, mas como algo prolífero, intrínseco à (e criador de) comunidade. Interrogando-se sobre qual seria «a “coisa” que os membros de uma comunidade teriam em comum», Roberto Esposito (ESPOSITO 1998), vai à etimologia de communis que significaria «aquele que partilha um ofício, uma tarefa, uma carga» para daí depreender que communitas seria «a totalidade das pessoas unida não por uma “propriedade” mas precisamente por uma obrigação ou por uma dívida, não por uma adição, mas por uma subtracção: por uma falta, um limite que é configurado como um ónus, ou mesmo por uma modalidade defectiva de quem é “afectado”, por confronto de quem é isento». Esposito localiza aqui, no contraste entre communitas e immunitas, a tradicional oposição associada com a alternativa entre público e privado. Se communis é o que tem de desempenhar uma tarefa – ou mesmo outorgar uma graça – imune seria o que está dispensado de o fazer, permanecendo assim ingrato. Mas o caminho pela etimologia de communitas «mostra que o munus que a communitaspartilha não é uma propriedade ou uma posse». Não seria um ter, mas em contrapartida, «uma dívida, um depósito, uma prenda que tem de ser dada, estabelecendo uma falta. Os sujeitos de uma comunidade estão unidos por uma “obrigação” no sentido em que se diz “eu devo-te uma coisa”, mas não [no sentido em que se diz] “tu deves-me uma coisa”». O que faria com que o comum fosse não «caracterizado pelo que é próprio mas pelo que é impróprio, ou, mais drasticamente ainda, pelo outro; por um esvaziar, seja ele parcial ou completo, da propriedade no seu negativo; removendo o que é especificamente propriedade própria, forçando-o a sair de si, a alterar-se a si».
O que nesta proposta interessa para pensar o ACARTE é o questionamento radical de uma noção identitária e a subsequente des-hierarquização que daí advém. Ao localizar a origem do comum não numa propriedade mas numa falta, numa lacuna, Esposito permite pensar a comunidade enquanto descontinuidade: uma comunidade que não é um dado adquirido, cuja identidade seria necessário estar sempre a afirmar em competição com outras identidades mais ou menos “fortes”, “desenvolvidas” ou “atrasadas”, mas antes uma elaboração viva, porque aberta às necessidades de determinado contexto. Uma comunidade onde a partilhar e a construir haveria uma série de “comuns”, pensáveis para além da dicotomia público/privado e de uma suposta imanência da comunidade a si própria. Igualmente, esta acção pela abertura à falta permitiria aceder de forma privilegiada às várias percepções comuns, por vezes mesmo contraditórias, que os contemporâneos teriam do seu momento histórico. Traçando grelhas mais finas e periodizações mais apuradas, em que as noções de “atraso” e de “periferia” (ou de “semi-periferia”), longe de aparecerem como incontornável explicação geral e generalista, seriam passíveis de ser entrevistas nos modos como agem: enquanto “motor”, “fardo”, “embaraço”, “vantagem”, “condição”… Ganhando, assim, uma série de contornos e nuances específicos de acordo com os seus sujeitos de enunciação, o momento histórico e os referenciais apontados.
O Centro de Arte Moderna e o ACARTE, utilização do espaço
Em 1984 o edifício do Centro de Arte Moderna é composto por dois corpos distintos: o Museu de Arte Moderna, formado por três galerias, interligadas; e um espaço de animação cultural pertencente, à época, ao ACARTE, dispondo de uma Sala Polivalente, de uma sala de exposições temporárias, de ateliers para actividades artísticas, estendendo-se aos átrios, à cafetaria e ao Anfiteatro ao Ar Livre. Contemplava também o Centro de Arte Infantil, um pavilhão dedicado às crianças, situado perto da entrada sueste do jardim.
Programação
Vídeo apresentado por Madalena Perdigão no Colóquio “Operações do Gosto” organizado por Orlando Garcia em 1989.
Muito perto já do final da sua vida, Madalena Perdigão (1989) dirá que a actividade do ACARTE se encontraria, em grande parte, estabilizada: duas tempo- radas de dança contemporânea por ano (normalmente em Maio e Novembro); Concertos à Hora do Almoço, em Maio/Junho; Dança no Anfiteatro ao Ar Livre, em Julho; jazz, no mês de Agosto; Bandas de Música no Anfiteatro em Agosto/Se- tembro; Encontros ACARTE — Novo Teatro/Dança da Europa em Setembro; teatro por artistas portugueses (duas vezes por ano, uma das quais em Outubro); e «nos intervalos» projectos multidisciplinares, performances, espectáculos de ma- rionetas, espectáculos de cinema para crianças, apresentação de vídeos, etc.
“A actividade do ACARTE está em grande parte estabilizada: ENCONTROS ACARTE – NOVO TEATRO/DANÇA DA EUROPA em Setembro, JAZZ no mês de Agosto, BANDAS DE MÚSICA NO ANFITEATRO em Agosto/Setembro, DANÇA NO ANFITEATRO AO AR LIVRE em Julho, duas temporadas de DANÇA CONTEMPORÂNEA (normalmente Maio e Novembro), TEATRO por artistas Portugueses (duas vezes por ano, uma das quais em Outubro) CONCERTOS À HORA DO ALMOÇO em Maio/ Junho e nos intervalos Projectos Multidisciplinares, Performances, espectáculos de Marionetas, espectáculos de Cinema para Crianças, apresentação de Vídeos, etc.
Não se trata de modo nenhum de um Festival permanente, como diz, mas sim de uma actividade intensa, desenvolvida ao longo de todo o ano. O carácter de festival apenas o reconheço aos ENCONTROS ACARTE – NOVO TEATRO/DANÇA DA EUROPA, pela particular concentração dos espectáculos, pela unidade temática e pelos condicionalismos estéticos.”
E se nas centenas de textos introdutórios que escreveu é possível compreender a pertinência de praticamente cada proposta, é também possível vislumbrar os seus frutos.
Numa leitura atenta dos materiais presentes no arquivo de programas e de imprensa do ACARTE há várias vozes que se repetem, tanto dos artistas, como de jornalistas e críticos, sendo possível delinear uma comunidade habitual que acompanhava as iniciativas, e perceber mudanças ao longo de um tempo que é também o da emergência de um novo de tipo de crítica especializada e de um novo tipo de público. A destacar:
• o rigor com que Madalena Perdigão apresenta cada iniciativa;
• a existência de algumas vozes críticas mais fortes, como a de Carlos Porto, José Blanc de Portugal, Tomás Ribas e Manuela Azevedo, sobretudo nos primeiros anos, e o aparecimento progressivo de mais vozes e mais crítica com o avançar dos anos, de que são exemplo os escritos de Maria de Assis, Helena de Freitas, Gil Mendo ou António Pinto Ribeiro, que chegará mesmo a trabalhar no serviço como assistente de Madalena Perdigão ou Rui Eduardo Paes, para referir alguns;
• a presença generalizada de referências às potencialidades do espaço da Gulbenkian e a como é «descomplexadamente» usado pelo ACARTE: do bar do CAM ao anfiteatro ao ar livre, ao pavilhão do CAI e aos jardins;
• a comparência evidente tanto de propostas cujas razões de ser remontariam a tempos distintos, quanto vindas de pontos muito variados do mundo entre os quais os recém-formados (então chamados) Países Africanos de Expressão Oficial Portuguesa.
• as variadas maneiras como, sobretudo nos primeiros anos, o espaço do ACARTE acolheu propostas que não teriam lugar institucional;
• o permanente esforço do serviço no apoio à criação e à encomenda sem deixar, porém, de ter espaço para a recepção de propostas externas ad hoc;
• o sucessivo uso de termos em inglês e as variadas referências à afirmação desta língua, uma língua que muitas vezes se percebe, pela imprensa da época, não ser ainda dominada;
• a intensa alusão à grande afluência de público, sobretudo jovem, às iniciativas do serviço;
• o modo como uma série de evento se iniciativas, sobretudo de dança, mas não apenas, propõe usos do corpo e da palavra que parecem constituir, em si, uma aprendizagem tanto para quem os leva a cabo como para o público (frequentemente em ciclos temáticos, muitas vezes compostos de propostas de diversos géneros, mas sempre acompanhados de discussão);
• a diferença imensa que se sente, em termos de ritmo e de intensidade da progra- mação, entre os primeiros anos e os últimos anos, com o ano de 1987 e a criação dos Encontros ACARTE (coincidente com a recente entrada para a CEE) a constituir como que uma charneira e a marcar uma aceleração na programação;
• o permanente esforço do Serviço no apoio à criação e à encomenda sem deixar, porém, de ter espaço para a recepção de propostas externas ad hoc;
• os modos como a actividade do Serviço se imagina e se pressente como generativa – sendo notório o aparecimento tanto de artistas como de técnicos, de produtores e de vozes críticas que posteriormente irão trabalhar noutras instituições entretanto abertas como o CCB, a Culturgeste, LX94 Lisboa Capital da Cultura ou o Festival dos 100 dias e a Expo 98[1];
• notória será também a criação e participação em redes nacionais e internacionais, de que o caso mais visível serão os Encontros ACARTE, mas tendo em conta a extensão das iniciativas, muitas mais haverá sendo de referir a formação continuada no que ao cinema de animação diz respeito, mas também, no âmbito da música, do jazz, do teatro musical, da performance arte, das bandas de música e das músicas do mundo, entre outras;
• a intensidade do debate e das polémicas que acompanharão muitas das iniciativas;n13) o modo como algumas propostas do Serviço, com,o por exemplo, os Encontros ACARTE, muito embora tenham ainda pouco tempo de existência, são encaradas como habituais, comuns já; 1
• e a forma como uma série de iniciativas do Serviço se afirmam desde muito cedo com uma identidade muito forte – como o Jazz em Agosto (que dura até hoje), o Centro de Arte Infantil ou o Cinema de Animação;
• a variadas maneiras como, sobretudo nos primeiros anos, o espaço do ACARTE acaba por acolher uma série de propostas que não teriam lugar institucional em mais nenhum outro sítio;
• e como se cruzará com uma série de espaços físicos e mediático emergentes, de que é sintomática, por exemplo, a contratação de António Pinto Ribeiro (à época crítico de dança no jornal Expresso e professor na recém-aberta (e então polémica) Escola Superior de Dança), mas também com a Bienal Universitária de Coimbra, ou o recém-criado IFICT, para dar outros exemplos no âmbito das artes performativas.